segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Gerações



Mafalda: Pero papá, por qué no me explicas?
Pai: Porque sos chica, y ustedes los chicos no entienden las cosas de nosotros los grandes.
Mafalda: Ok. Pero prometeme una cosa papá.
Pai: Qué?
Mafalda: Que cuando yo sea grande no me vas a salir con que nosotros los grandes no entendemos las cosas de ustedes los ancianos.


As gerações são hoje um assunto recorrente. O tema está no domínio público. É daqueles assuntos sobre os quais “todo mundo tem algo a dizer”, afinal de contas o lance das gerações “está na cara”; está aí pra qualquer um ver. Ao mesmo tempo em que se tornou moda nas revistas de alta circulação, as gerações entraram no discurso da gestão.

Obviamente, gerações, coortes e outros construtos sociológicos não são novidade. Não é desse tipo de abordagem que falarei aqui, mas de perspectivas pseudo-científicas que deturpam o conceito, simplificando-o, utilizando-o para além do que é possível, etc. Neste sentido, tenho algumas ressalvas ao uso de conceitos como “geração” no mundo do trabalho, expediente comum em revistas especializadas. Mais especificamente, tenho ressalvas ao uso da “geração” como categoria explicativa para problemas específicos nas relações de trabalho.

Em primeiro lugar falar em gerações é efetuar uma categorização e, como tal, tem suas vantagens e suas limitações. Acontece que, como tentarei discutir adiante, o conceito de geração, por ser bastante amplo, não é adequado para o uso em níveis mais específicos de análise. Isto é precisamente o que vem sendo feito.

Segundo, a literatura corrente sobre gerações (aqui não nos referimos a, por exemplo, Manheim) apresenta pouca robustez empírica e uma sub-teorização excessiva: grande parte daquilo que se produz sobre o tema são traduções acríticas e reproduções simplificadas ao melhor estilo business magazine. Alguns dos textos e artigos relacionados ao tema, buscando transparecer uma certa prudência e solidez teórica, alegam que falar em gerações não significa falar simplesmente de faixas etárias, mas de contextos partilhados, de história comum, etc. Contudo, a complexidade do tema é logo em seguida esquecida e esses mesmos textos utilizam períodos históricos delimitados e consideram contextos absolutamente irrelevantes para falar da população em análise. Ademais, partem do pressuposto de que “contexto” e “eventos históricos” são fatos que simplesmente estão “lá fora”, quando na verdade, aquilo que dizemos da "história" está em permanente construção e reconstrução e que este processo permanente reflete as contradições e tensões da contemporaneidade. Ou seja, a história muda, os significados de eventos históricos mudam e as formas com que delineamos contextos também mudam.

Finalmente, um grave problema é o fato de que o uso da "leitura geracional" não se limita a macro-análises, nível para o qual a mesma parece ser mais adequada. Não. O conceito de geração tem se apresentado como mais um recurso para análises ao nível individual e grupal no contexto de trabalho. Ou seja, a geração vira mais um conceito instrumental, mais uma ferramenta do gestor “antenado” nas boas práticas. E isso tem implicações potencialmente negativas para a intervenção no trabalho.

Falar em geração é criar conceitos e, portanto, efetuar recortes na realidade. Trata-se de um dos processos mais básicos na ciência. Conceituar é essencialmente captar parte da realidade e, ao mesmo tempo, reduzir sua complexidade para torná-la inteligível. Essa é a principal utilidade da teoria, dos conceitos, pois nos permitem falar sobre um mundo extremamente complexo, fazer predições sobre eventos relevantes, etc. Portanto, o conceito ou construto (ex.: Geração X) deve, para ser relevante, refletir de modo representativo uma realidade e, consequentemente, ter uma utilidade prática. Para isso, é necessário que o mesmo atenda alguns requisitos básicos.

Em primeiro lugar, é necessário que o conceito faça referência a um padrão minimamente homogêneo de fenômenos. Ou seja, é preciso que a parte da realidade (no caso o grupo de pessoas) que estou identificando com um conceito (Geração X) apresente minimamente um padrão identificável de características inter-relacionadas. O que o conceito de Gerações nos permite tornar inteligível? Conseguimos de fato ver nos membros da “geração Y” um padrão identificável? Em relação a que aspectos? Quão intensas são essas semelhanças? A que nível de abstração precisamos chegar para que um padrão de fato possa emergir?

Um outro requisito fundamental para conceitos científicos é a possibilidade de demonstrarmos o seu poder discriminativo. Um conceito é aceitável se me permite discriminar padrões distintos de fenômenos. Por exemplo, um conceito como Geração X não tem sentido se seus membros não diferem significativamente daqueles que eu considero da Geração Y. Um exemplo mais claro: não faz sentido falar em Raça como conceito biológico se a estrutura genética (seu fundamento biológico) de um Branco é tão semelhante à de um Índio como à de um outro Branco (não à toa, as pessoas que ainda vêem sentido falar em raças, mudaram a base do conceito - da biologia para a cultura). De modo análogo, não faz sentido falar em geração Baby Boomers e Geração Y se um membro do primeiro grupo tem, por exemplo, valores tão semelhantes aos de membros de seu grupo como aos de membros do segundo grupo. Dito de outro modo, porque falar de grupos geracionais diferentes se a diversidade - ou semelhança - de seus membros não é função direta da época em que eles nasceram?

Finalmente, um outro requisito básico para a utilidade de um conceito é a propriedade do mesmo permitir fazer predições. Neste sentido, ao identificar que um sujeito que pertence a um determinado grupo (Geração X, por exemplo) qual a probabilidade de que o mesmo apresente aquelas características que compõem o padrão de fenômenos que supostamente justificam o uso do conceito. O conceito geracional não nos permite fazer predições ao nível individual ou grupal. À despeito disso, é assim que ele vem sendo utilizado no discurso da gestão.

Quando se fala em gerações, geralmente são estabelecidos períodos delimitados a partir de eventos relevantes do contexto histórico. Como mencionamos acima, o pressuposto assumido no “recorte geracional” é de que o contexto (social, cultural, econômico, político, etc.) influenciará um grupo de pessoas de modo a desenvolver características mais ou menos homogêneas. Ou seja, o contexto partilhado deverá “produzir” nas pessoas alguns traços comuns, traços esses que refletem o "espírito da época".

Um olhar sob a lente das gerações, portanto, chama a atenção do analista para a influência dos processos de socialização (principalmente primária) na formação de valores e crenças partilhadas entre os membros de uma geração.

Chegamos de fato à segunda questão levantada inicialmente: aquela referente à subteorização e às adaptações simplistas de modelos externos à nossa realidade. Vejamos: são considerados baby boomers, por exemplo, aqueles nascidos entre as décadas de 40 e 60 (os detalhes precisos em relação aos marcos inicial e final desse período variam conforme o autor do texto/artigo/livro). Como sinalizamos mais acima, o que marca uma geração é o contexto em que seus integrantes viveram.

Então vamos lá: quais são as referências geralmente utilizadas para falar das características dos baby boomers? Assassinato de JFK, Martin Luther King, Homem na Lua, Watergate, Crise do Petróleo, a conjuntura da Guerra Fria, Joseph McCarthy, Women´s Liberation Front, liberdade sexual, movimento hippie, a televisão. Ok. Essas são as referências geralmente usadas no Brasil pra falar em Baby Boomers. Agora vejamos: Quem no Brasil dispunha de televisão no anos 60 e 70? Provavelmente nem 5% do número nos EUA ou Europa. Quem vivenciou o caso Watergate? Quem viveu a guerra do Vietnã? Podemos falar em liberação sexual da mesma forma que americanos e europeus? Onde estão referenciados os efeitos da ditadura de Getulio ou do gorverno militar nas esferas econômica e cultural? Onde entra a influência do milagre econômico ou a força dos movimentos de esquerda desde então? Os “cinqüenta anos em cinco” de Juscelino? Os movimentos de guerrilha patrocinados por Cuba?

Enquanto os americanos viam o homem chegar à lua ainda vivíamos quase todos no campo e sem televisão. Como achar que podemos atribuir as mesmas características ao baby boomer brasileiro se ele vivenciou um contexto absolutamente diverso? Mas muitos autores importam inadvertidamente o “perfil psicológico” do baby boomer americano para o Brasileiro.

Um outro fato marcante utilizado como referência para avaliar as características de gerações é a Segunda Grande Guerra. EUA e Europa consideram o contexto da Segunda Guerra uma grande influência na formação de seus habitantes jovens. O Baby Boomer, nascido logo após a guerra “viveu em um contexto de reconstrução”, na estruturação do estado de bem-estar social, do pleno emprego.

Mas e no Brasil? Que período foi esse? Que marca a Segunda Guerra nos trouxe? Não seria mais relevante usarmos como referência os quinze anos de Estado Novo (1930-1945), a Intentona Comunista de 1935, os 50 anos em 5, etc.? Podemos falar em espírito de reconstrução do mundo em nosso “pós-guerra”? Seria sensato dizer que, como europeus e americanos, estávamos caminhando para o Welfare-State?

Enfim, se o contexto é a base da diferenciação dos grupos de gerações, não deveríamos analisar o que foi marcante no nosso, o que teve impacto suficiente para moldar visões de mundo e valores aqui no Brasil? Feita essa análise, será que contaríamos com os mesmos pontos de corte pra diferenciar uma geração de outra? Ora, se vamos elaborar categorias (já demasiado vagas) que as façamos próximas da realidade concreta brasileira.

Mas tudo bem. Suponhamos que tivéssemos à mão uma categorização que reflete a evolução histórica brasileira. Estaremos assumindo o pressuposto da leitura geracional, ou seja, de que aspectos econômicos, políticos, sociais e culturais do período em que a pessoa nasce e se desenvolve tem grande influência sobre seus valores, seu modo de agir, de ver o mundo, de encarar a relação de trabalho, etc. de modo que podemos encontrar pontos comuns, que perpassam a geração. De certa forma assumimos que faz sentido referir-se a um grupo etário como se falássemos de um todo mais ou menos homogêneo.

Estaremos verdadeiramente assumindo o que? Que, por exemplo, a forma com que as pessoas de uma mesma geração enxergam a relação entre empregado e organização é, de algum modo, semelhante pois foi construída a partir de um contexto comum. Isso quer dizer que podemos atribuir pontos de encontro entre o filho do cortador de cana no interior de Pernambuco, o filho do advogado catarinense, o filho do zelador de um prédio em São Paulo, o filho de um traficante de Vitória, o filho de uma família de doze filhos na região metropolitana de Manaus, a filha de um fazendeiro do interior de Goiás, ao filho único de mãe solteira criado por avós, a filha adotada de um casal de homossexuais, o filho de imigrantes japoneses no maranhão, o filho de ninguém que vive nas ruas desde que aprendeu a andar, o filho de um pai-de-santo do sul da Bahia, a filha de um policial militar do Rio de Janeiro, o filho de muçulmanos fundamentalistas residentes em foz do iguaçu, o filho de um casal de psicólogos de Pirinópolis, a filha de um pastor evangélico do subúrbio de Santos, o filho do pescador em Tremembé, a filha de pai norueguês e mãe paraibana, o filho de um metalúrgico sindicalizado do ABC paulista, a filha de um médico cirurgião, o filho de um senador da república, a filha de uma socialite emergente carioca, o filho de atores de teatro curitibanos?

Em que medida é possível falar em padrões de fenômenos emergindo de tamanha diversidade? Mais uma vez, a que nível de abstração precisamos chegar para que falar em semelhanças? Ou será que os especialistas em “gerações” do mundo corporativo não estão se referindo a uma categoria extraída da realidade total, mas, ao contrário, estão falando de uma visão idealizada dos membros de uma – ainda reduzida – classe média urbana de alta escolaridade? Esse parece ser o quadro mais específico a que se referem as revistas ao falar em geração Y, por exemplo. Não simplesmente às pessoas nascidas a partir de 1980, por exemplo.

Finalmente, chegamos à última questão, referente à aplicação dos conceitos de gerações em níveis de análise onde os mesmos fazem pouco sentido. Tal questão relaciona-se com a entrada do tema como mais uma moda no mundo do trabalho. Quando um determinado assunto vira moda organizacional temos dois problemas inevitáveis:
- A sensação de necessidade imediata de sua aplicação;
- A sensação de necessidade de sua aplicação em qualquer situação;

Para o gestor, em particular, leitura geracional pode “cair como uma luva” em dois aspectos. Em primeiro lugar, ela o instrumentaliza. Ela oferece uma gama de “conhecimentos” que o habilita a lidar com as “diferentes necessidades, expectativas, valores” que os membros de uma determinada geração carregam consigo. Ou seja, a deturpação do uso do conceito de gerações, fornece ao gestor uma imagem estereotipada de seus empregados. O estereótipo o isenta, em certa medida, de compreender a unicidade e complexidade de cada um de seus empregados.

Em segundo lugar, a leitura geracional pode oferecer uma explicação fácil e inteligível para os problemas organizacionais. É muito importante para o gestor ter um diagnóstico para os problemas que parece não compreender. Em seu formato mais rasteiro e simplificado, termos como “conflito de gerações” oferece justamente isso.

Finalmente, ela oferece uma explicação que nas entrelinhas nos diz: “o trabalho em si, a sua forma de gerir, a organização do trabalho, não estão na raiz do problema. Na verdade temos um problema social, em escala maior, que obviamente manifesta-se também no trabalho, o conflito de gerações, etc”. O conflito de gerações externaliza os problemas do trabalho. Tudo o que a organização precisa fazer é, de modo benevolente, lidar com o problema que "herdou" da sociedade lá fora.

Dessa forma, as relações de exploração, a cisão entre concepção e execução, as condições físicas de trabalho, as relações de poder presentes na equipe, a falta de reconhecimento, o descompasso entre responsabilidade e autonomia, o absurdo da avaliação injusta, e outros problemas comuns às nossas organizações não precisam ser investigados.

Essas são apenas algumas das implicações da forma como tratamos o assunto hoje. Certamente existem outras.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

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