segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Políticas de Avaliação e Avaliações Políticas

Em outra ocasião, postei aqui um texto que discutia as teorias implícitas que avaliadores possuíam (consciente ou incoscientemente) em relação a aptidões humanas bem como a influência destas no resultado das avaliações que os mesmos faziam do desempenho de outrem. Ao final do texto, deu-se a entender que este (um viés bem específico) é apenas um aspecto a afetar o processo Avaliação de Desempenho (AD) nas empresas. Mas há muito mais coisas entre o céu e a terra...

De fato, uma boa parte dos estudos ancorados na psicologia buscou identificar os desvios, as distorções, os enviezamentos relacionados ao ato de avaliar desempenho. O estudo a que me referi naquele texto encaixa-se precisamente nessa linha de investigação. Mas dentro deste escopo podemos ainda mencionar inúmeros outros estudos, que identificaram tipos diferentes de distorções de percepção, analisaram o impacto de fatores emocionais na avaliação, etc. Ainda nesta linha, uma vasta literatura refere a questões como efeito halo, profecia auto-realizável, percepção seletiva, defesa perceptiva, etc. Fatores como estes seriam os grandes vilões da avaliação, obstáculos à “correta” apreciação do desempenho laboral. Além dos estudos que aplicam conceitos clássicos de psicologia da percepção, um outro grande conjunto de estudos de campo e experimentos abordaram problemas relativos à mensuração de instrumentos de medida de desempenho, efeito do treinamento de avaliadores no processo, etc. etc. etc.

Todos estes estudos visam, de uma maneira ou de outra, um objetivo principal: identificar formas de garantir um processo de avaliação preciso, exato. Portanto, identificar fatores que “distorcem” a percepção do avaliador, avaliar as qualidades psicométricas das escalas de medida, comparar eficácia de diferentes métodos de avaliação, entre outras, são todas formas de garantir um processo que produza informações exatas sobre o desempenho dos trabalhadores. A meta da avaliação deve ser, portanto, a precisão. Ok.

De modo geral, pode-se dizer que o componente político, inevitável nas organizações – e, por conseguinte, inevitável nas avaliações de desempenho – tem sido deixado ao lado, ou, quando muito, tomado como mais uma das inúmeras fontes de distorção. Por componente político, entendamos tudo aquilo que envolva comportamentos/ações direcionadas à proteção de interesses próprios e de grupos específicos, que buscam o controle sobre recursos, a manutenção da legitimidade, a garantia da sobrevivência profissional e grupal, etc. Este é obviamente um conceito que abrange uma multiplicidade de fenômenos.

Quando analisamos criteriosamente os estudos tradicionais uma constatação é inevitável: a de que não é possível erradicar completamente as distorções, que não existe tal coisa como um sistema absolutamente objetivo. Quando analisamos a dimensão política no processo de AD, uma constatação ainda mais importante pode ser feita: que a precisão, embora desejada arduamente pelos profissionais de RH, nem sempre é o principal objetivo dos atores envolvidos neste processo. Desenvolveremos um pouco mais detalhadamente estas duas constatações, com maior atenção para a segunda.

A extinção completa do viés e da distorção na avaliação não apenas constitui uma meta irreal, mas, precisamente por essa razão, tem consequências negativas: quando se assume a precisão absoluta como objetivo final do processo, direcionamos esforços de pesquisadores e profissionais de RH à busca de soluções para questões que, afinal, são secundárias (qualidade de instrumentos e sistemas, identificação de viés cognitivo, etc.).

A segunda constatação, embora relacionada à primeira, é a meu ver, ainda mais importante.

Um olhar realista sobre qualquer processo de AD constata que a precisão não é – e, por vezes, de fato não deveria ser – o principal objetivo que gestores buscam atingir ao conduzir uma AD. Assumirmos essa falácia, ou seja, acreditar que os gestores buscam a precisão acima de qualquer outra coisa nos faz chamar “erro” o que na maioria das vezes é um comportamento deliberado e estratégico por parte do avaliador/gestor.

De modo geral, os gestores demandam instrumentos de gestão que possuam uma certa margem de manobra, uma certa flexibilidade que o permita utilizar as ferramentas à sua disposição a favor de seus interesses e/ou dos interesses de seu grupo. Não à toa, temos sistemas de AD flexíveis o suficiente para permitir que avaliadores façam ajustes de modo que suas avaliações ganhem as feições necessárias a seus objetivos, imediatos ou futuros. Vejamos então alguns exemplos daquilo que alguns chamariam “erro” de avaliação mas que podem, de modo mais realista e pragmático, ser vistos como comportamentos estratégicos.

Com muita freqüência, avaliadores tendem a fornecer uma avaliação de um empregado que superestima o seu real desempenho (quando falamos “real” não supomos que exista tal coisa, mas que existe o “real” desempenho tal como acredita o próprio avaliador). A literatura indica que a inflação de escores de desempenho é uma prática mais comum que imaginamos. Mas então que “erro” é esse?

Na verdade, muitas razões podem explicar um acontecimento desta natureza. O avaliador pode fazê-lo para maximizar as chances de seu empregado conseguir um aumento, haja vista a usual conexão, nas organizações, entre desempenho e remuneração/progressão na carreira. Assim ele pode usar o processo como ferramenta motivacional individual ou grupal. Pode também fazê-lo com o objetivo de evitar um confronto futuro com um determinado empregado, poupando-se do desgaste e garantindo o apoio do empregado para futuras empreitadas. Pode ainda inflar uma avaliação com o receio em relação ao fato de que a avaliação fará parte do histórico do empregado. Para proteger alguém, reconhecidamente eficaz outrora, mas que teve um mau desempenho por razões pessoais e, assim, assegurar que o empregado volte a seu patamar de desempenho. Um outro motivo diz respeito à gestão de impressões: em última instância, o desempenho (ruim ou bom) de um empregado é considerado como responsabilidade de seu gestor. Dessa maneira, inflar resultados poderia parecer uma boa maneira de estar "bem na fita". E poderíamos ainda dar vários outros exemplos.

Por outro lado, temos as avaliações excessivamente negativas. Por que um gestor “daria uma nota” menor que aquela que ele mesmo acredita que o empregado merece? Ora, assim como a inflação de escores, uma má avaliação pode servir a muitos propósitos estratégicos. Pode parecer aos gestor uma forma de punir um empregado ou um ato isolado de um subordinado. Pode configurar-se uma persuasiva mensagem, de que o empregado não é mais bem-vindo naquela área. Pode ser também uma forma de construir um respaldo para uma futura demissão, estratégia esta cada vez mais comum na medida em que as demissões freqüentemente tornam-se alvo de processos judiciais. Paradoxalmente, os registros de desempenho parecem ser encarados como uma aferição satisfatoriamente objetiva do desempenho, servindo assim de respaldo para o referido fim.

Enfim, as estratégias enumeradas apontam para um fato que merece destaque: muito freqüentemente, um gestor não deixará que a busca pela exatidão o atrapalhe na consecução de seus objetivos. O trabalho do gestor consiste em atender uma série de demandas simultâneas e contraditórias e responder a pressões em diferentes direções para que possa realizar seu trabalho e sobreviver na função (cortar custos, motivar empregados, conseguir apoio e recursos, fazer alianças, garantir legitimidade, etc). A AD pode parecer mais um meio de conseguir o que pretende, principalmente junto a seus empregados. Por outro lado, mas em sentido semelhante, cumprir a norma da exatidão pode configurar-se um obstáculo indesejável. Neste sentido, a conformidade ao critério da precisão nas avaliações, objetivo declarado da organização formal, pode parecer ao gestor um tanto limitador...castrador.

Dito de outro modo, a AD não é um empreendimento focado no passado – como a visão pautada na precisão parece sugerir – mas principalmente no futuro.

As avaliações têm conseqüências para empregados e gestores, servem de insumo para outros sistemas e têm impacto sobre a carreira do empregado, sobre o clima do grupo e, portanto, sobre os resultados da organização. Logo, as avaliações influenciam o futuro da organização, das equipes de trabalho e de seus líderes.

Portanto, a pergunta que mais comumente o avaliador faz a si mesmo não é exatamente uma consulta a eventos passados, como “qual foi exatamente o desempenho deste ou daquele empregado?”, mas uma projeção dos cenários futuros decorrentes de suas decisões, como “quais os resultados possíveis de fazer uma avaliação precisa (ou imprecisa – para mais ou para menos)?” ou “o que acontecerá se eu avaliar este empregado como eu de fato o percebo?”, ou ainda “quais serão os espólios de minha avaliação?”. Obviamente, aqui estamos falando de um jogo muito mais complexo do que julgam muitos especialistas. Um xadrez com muitas peças, certamente.

Reconhecer o componente político/estratégico presente nas Avaliações de Desempenho é, portanto, um passo necessário na busca de alternativas para seu melhor uso. Negá-lo ou subestimá-lo nos fará lutar contra moinhos de vento e, por conseqüência, nos impedirá de evoluir no processo.

Importa ainda ressaltar que o reconhecimento da existência deste componente não deveria ser acompanhado de julgamentos moralistas. Seria, em otras palavras, pararmos de falar em “erros” e passarmos falar em “má fé”. Precisamos entender que essa é uma realidade e que o componente político pode ser, de fato, funcional, importante em determinadas circunstâncias. Por outro lado, o reconhecimento de sua existência deve sim ser acompanhado da consciência de seus potenciais efeitos negativos.

2 comentários:

Marcelo Menezes da Costa disse...

Grande texto Diogo, levar em consideração que onde há um grupo de humanos, está ali também a forma e como se organizam, é pressupor a sua complexidade. Ficar estacionado em pensamentos dualistas, como o de "erro", é pressupor que exista o certo, o perfeito e o inalterável.
Muito bom o texto, tanto em sua lucidez, quanto em sua iniciativa.
Grande abraço meu "camarada"

Marcelo M. da Costa

Diogo Borba disse...

Camarada Marcelo. Obrigado pelo comentário. Em breve estaremos em Natal. Abç