quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Caça às Bruxas

Os processos relacionados com feitiçaria acompanharam praticamente toda a Idade Média. Milhares de pessoas, em sua maioria mulheres, foram acusadas de praticar “feitiçaria” e uma grande parte destas encarou a fogueira.



Mais do que a feitiçaria, a caça fervorosa às suas representantes, desempenha durante esse período, inúmeras funções em diferentes perspectivas: no plano do psiquismo individual, no plano sociológico, do estado e da religião. Concentro-me sobre a função do discurso sobre feitiçaria e feiticeiros ao nível do psiquismo individual. Cito Delumeau:

“Graças ao feiticeiro, as desgraças insólitas que atingiam os indivíduos, encontravam uma explicação”.

Dito de outra forma: a concepção da feitiçaria desempenhava principalmente uma função explicativa. Ela oferecia uma explicação coerente e – principalmente – inteligível para os acontecimentos. Constituía, portanto, uma forma de combater a ansiedade inerente ao desconhecido, pois nomear o desconhecido é, antes de qualquer coisa, tranquilizador. Não por coincidência as acusações de feitiçaria proliferam de forma mais intensa durante crises econômicas e surtos da peste. Além disso,

“as acusações de feitiçaria ajudam indiscutivelmente a descarregar uma agressividade reprimida por um tempo demasiadamente longo, uma tensão muito duradouramente contida; sua função catártica não deixa dúvidas. Assim deslocadas, representadas, as oposições tendem (...) a se resolver no plano da afetividade: o grupo precisa necessariamente escolher um bode expiatório sobre o qual vai polarizar-se a agressividade. Essa descarga emocional (...) acarreta, por eficácia simbólica, a abolição dos conflitos”.

Assim, as acusações constituem um forte instrumento de afirmação da norma, já que as suspeitas são levantadas sobre pessoas que, de alguma forma, representam o estranho.

“Elas (as acusações) tinham por origem tal pessoa da aldeia considerada malévola por causa de seu comportamento estranho, de suas anomalias físicas ou de má reputação”

As acusações de feitiçaria apenas fazem sentido no interior de um discurso onde o mundo rapidamente transforma-se em preto e branco, previsível e, por essa razão, mais “habitável”. A redução das complexidades e a conseqüente simplificação da realidade social e natural constituem artifícios através dos quais manifestam-se os efeitos tranqüilizadores das questões em volta da feitiçaria.

Apesar de revestidos de uma pretensa racionalidade, os rituais de inquisição, mais que uma busca criteriosa por provas e evidências, constituíam um instrumento de produção e reprodução de uma verdade anterior a seu empreendimento.


De forma semelhante, nos EUA da década de 50, a caça aos comunistas liderada pelo senador McCarthy, pintava um mundo polarizado, maniqueísta, com todos os ingredientes necessários para a euforia coletiva em torno do comunismo: ignorância da população, cultivo sistemático da sensação de ameaça externa, encorajamento de crenças conspiratórias.

Em tal contexto, assim como na Europa Medieval, a descarga da agressividade tinha alvos bem definidos. Ao mesmo tempo, o discurso exercia uma função normatizante, já que possibilitava aos americanos levantar suspeitas sobre aqueles que, de alguma forma, representavam desvios da norma e cujas narrativas não obedeciam uma sintaxe aderente à linguagem do discurso hegemônico.

No plano individual, e assim como nas suspeitas de feitiçaria do passado, as acusações de comunismo constituíam uma forma aceitável (e compreensível) de exprimir hostilidades voltadas ao outro, já presentes anteriormente.

As audições no senado não seguiam procedimentos muito diferentes daqueles descritos nos manuais da inquisição e implementados de fato em tais processos. A função catártica desses rituais de pretensa “extração” da verdade - no caso dos EUA, transmitidos nacionalmente pelos canais de televisão - facilitou a reificação do discurso radical que se ensejava.

Neste sentido, mecanismos semelhantes têm operado nos mais diversos grupos sociais através do tempo e espaço, alimentando-se dos mesmos medos e anseios inerentes ao “estar no mundo” (medo do que é estranho, desconhecido e, principalmente, daquilo que é incompreensível) bem como de nossos desejos normativos (a necessidade de “colonizar” nossa realidade).

Assim visões de mundo homogeneizantes e maniqueístas são construídas sobre terreno fértil. As organizações de trabalho, como qualquer outro grupo social, apresentam óbvios paralelismos a essas questões, os quais, quase sempre, passam despercebidos pelo discurso pretensamente racional sobre o trabalho.

A gestão de pessoas, por si mesma um convite ao que é complexo e ao incompreensível, muito amiúde desperta naqueles responsáveis por ela, a necessidade de pintar um mundo simples, onde o certo e o errado estão claramente à nossa frente. Não à toa os gestores constituem um contigente ávido por certezas fáceis, por soluções cabais e dispostos a promover alguns a "gurus". Tudo isso ajuda a tirar convenientemente o enorme peso da responsabilidade de decidir onde não se sabe ao certo o que se deve fazer.

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