quarta-feira, 29 de julho de 2009

Pressupostos

Todos somos, em certa medida, “cientistas”. Observamos nosso mundo, formulamos hipóteses acerca da relação entre os fenômenos que observamos, desenvolvemos teorias a partir disso e, muitas vezes, as colocamos à prova. Independente do rigor que imprimimos ao nosso método de análise, estamos constantemente buscando explicar o que vemos e o porquê daquilo que acontece ao nosso redor. Procuramos evidências para suportar nossas ações e, muita vezes, apenas pelo prazer de conhecer. Observar uma criança de dois anos explorando seu mundo nos dá uma idéia bastante clara de como esse processo é típico do ser humano.

Porém, com o tempo, a busca espontânea e excitante por conhecer novos fenômenos transforma-se numa caminhada desinteressada e muitas vezes voltada apenas para a confirmação de nossas certezas já construídas. Esquecemos a máxima popperiana de que toda verdade científica é provisória e deixamos de buscar alternativas. E nem sempre temos a humildade para reconhecer a fragilidade das bases sobre as quais erguemos nosso pequenos grandes dogmas.

Assim, as teorias que desenvolvemos acerca de como funciona a realidade deixam de ser instrumentos que auxiliam na percepção do mundo para tornar-se lentes rígidas que ofuscam a enorme complexidade contida naquilo que pretendemos ver. Passamos a ver o que queremos. Selecionamos aquilo que não contradiz o que já “sabemos” e somamos isso às inúmeras outras “evidências” que colhemos ao longo da vida. Enfim, fechamo-nos para possibilidades fora de nossos modelos de mundo.

Essa espécie de estereotipia ou “mini-delírio” (chamo delírios porque muitas das convicções que criamos são absolutamente impermeáveis a qualquer evidência contrária) nos acompanham com maior ou menor intensidade na relação com outras pessoas. Aplicamos nosso “modelo rígido” de comportamento humano (ou, digamos, nossa concepção de natureza humana, construída ao longo da vida) e realizamos julgamentos, interpretações, deduções e predições coerentes com o mesmo.
No trabalho a coisa não é diferente. Arriscaria dizer que no trabalho a dimensão desse problema torna-se absolutamente evidente uma vez que o trabalho é a esfera central da vida de praticamente toda a população mundial.

Há praticamente meio século, McGregor (Foto) nos chamava a atenção para a importância das atitudes que gestores formam em relação a seus empregados. Argumentava ele que é preciso que conheçamos “as lentes” através das quais os gestores enxergam o trabalho, os trabalhadores e a relação entre empresa e empregados para compreendermos plenamente o processo de trabaho e diversos fenômenos a este relacionados.

Para McGregor, os gestores têm uma de duas concepções acerca do comportamento dos trabalhadores frente ao trabalho. Essas concepções estão, via de regra, bastante enraizadas e influenciam a forma como os gestores interpretam as ações de trabalhadores, planejam e desenham o ambiente de trabalho, desenvolvem sistemas de consequência, etc.

A primeira, denominada Teoria X, é aquela em que os gestores consideram que os trabalhadores em geral, por sua “natureza” não gostam de trabalhar. A motivação para o trabalho é essencialmente financeira e o trabalho é percebido como um “mal necessário” para o alcance de objetivos pessoais . A segunda, chamada Teoria Y, é aquela adotada por gestores que consideram que os trabalhadores são naturalmente motivados para o trabalho e, portanto, este é o espaço privilegiado onde as pessoas satisfazem suas necessidades de desenvolvimento e auto-realização.

Apesar de ter descrito grosseiramente a contribuição de McGregor, está claro que as diferentes concepções de natureza humana contidas em cada uma dessas orientações levam a consequências diversas. Os gestores da primeira certamente acreditarão que o seu papel é fundamentalmente o de controlar, fiscalizar, o processo de trabalho e os empregados são vistos como máquinas que não devem executar nada além daquilo para que foram “programadas”. Os gestores da segunda vêem a sua função como a de um facilitador do desenvolvimento do processo de trabalho, e buscará motivar os empregados através da influência e considerando suas necessidades de auto-realização. Dito de outro modo, reconhecer a importância dessas concepções nos permite compreender, sob um ponto de vista privilegiado, aquilo que acontece no ambiente de trabalho, nos dá pistas sobre os motivos de ações gerenciais.

E os que ficam?

No texto passado falamos acerca do uso das demissões em massa pelas organizações de trabalho. Dissemos que tal prática tem significativo impacto não apenas sobre as vítimas diretas do processo, mas suas famílias, e a sociedade em geral. Argumentamos, finalmente que, ao buscar solucionar uma problema (geralmente urgente e imediato) as demissões em massa, como quase toda ação de gestão, levanta outros potencialmente iguais ou superiores aos que originaram a necessidade de se implementar a medida.

Mais especificamente, defendemos que as demissões afetam negativamente as pessoas que permanecem na organização. Consequentemente, a empresa – se é que podemos abstrair a idéia de todo aí contida das pessoas que o compõem – sofre seus efeitos. Neste sentido, é lógico supor que a condução do processo é fundamental para antecipar esses possíveis problemas e solucioná-los ou amenizá-los. Isto, claro, supondo que o corte de pessoal seja inevitável.
A atenção a diversos aspectos da condução do downsizing justifica-se não apenas por razões ético-humanistas mas também por uma apreciação prática – embora profunda – das relações custo-benefício envolvidas. Isto porque subestimar o fator humano nesse processo levará a problemas organizacionais em curto, médio e longo prazos.

Como vimos, o downsizing é, em grande parte, resultante de pressões do ambiente competitivo. A diferença é que ele pode ser fruto imediato dessas pressões ou pode ser resultado de uma adaptação gradativa da empresa, de maneira a deixá-la pronta a responder de maneira mais eficaz a pressões futuras. Independente dessa diferença, a forma como ele é implementado pode acentuar ou amenizar suas potenciais desvantagens, entre as quais cito apenas algumas presentes na literatura:

• Desperdiça o capital intelectual acumulado nas organizações;
• Pode indicar uma visão das organizações sob uma perspectiva unidirecional (top-down);
• Efeito negativo na responsabilidade e na imagem social da organização.

Todos esses pontos são importantes e representam ameaças ao funcionamento subsequente da empresa. Se esta não tem uma política adequada de gestão do conhecimento, as pessoas que saem não deixarão rastros, seu conhecimento acumulado (explícito e tácito) será levado com eles e provavelmente usados por outras empresas. A imposição das medidas de maneira impessoal e ríspida será interpretada de maneira negativa pelos que ficam e terá efeitos perversos sobre os mesmos. Finalmente, o efeito na imagem da organização diminuirá sua capacidade de atrair talentos e poderá até causar impacto no valor de sua marca.

O nosso propósito, porém, é fazer um recorte mais preciso e centrar sobre o impacto do downsizing nas pessoas:

Aumento da carga de trabalho (há um autor inglês, crítico da re-engenharia, que diz que o principal desafio dessa prática é convencer os empregados a fazer mais pelo mesmo salário);
Amento do stress laboral;
Aumento da percepção de insegurança no emprego;


Uma série de falhas na condução do processo podem acentuar esses efeitos nos sobreviventes, mas se;

de uma maneira geral o downsizing foi mal planejado (por falha de previsão ou por incompetência);
a comunicação durante o processo foi falha e deu margens a ruídos;
a liderança não se mostrou presente durante o processo e não apresentou claramente os critérios para demissões;
os condutores do processo falharam em calcular acertadamente o efetivo mínimo para a futura situação da empresa;
se a empresa não antecipou aos funcionários se novas demissões viriam em seguida das primeiras;
a empresa não teve a preocupação de prover serviços de re-colocação (outplacement) para aqueles que foram demitidos, ou de apoio psicológico aos que permaneceram;

os efeitos podem ser absolutamente devastadores para a saúde mental daqueles que sobreviveram aos cortes.

É bem verdade que as pessoas reagem de maneiras diferentes ao downsizing, assim como o fazem em relação a qualquer evento estressor – a esse propósito Mishra & Spreitzer (1998) apresentam uma interessante tipologia de respostas ao downsizing usando como base teorias sobre o estresse. Independente disso, as falhas acima citadas aumentarão as chances de mais pessoas reagirem de maneira negativa (destrutiva e passiva, para falar na tipologia dos autores).


O sobrevivente ao downsizing pode apresentar sintomas físicos e mentais relacionados com ansiedade prolongada (até mesmo desenvolver quadros graves), percepções de injustiça, perda de confiança na gestão da empresa, queda do comprometimento com a empresa, medo de mudanças, redução na satisfação e motivação, diminuição da disposição para tomar ações que impliquem riscos (inerentes a certos cargos) e, em geral, uma sensação de impotência em relação aos acontecimentos em seu entorno.


É óbvio, por razões humanitárias, que essa é uma situação indesejável. Mas mesmo olhando sob a ótica fria do próprio funcionamento da empresa, não são menos óbvios os efeitos devastadores das consequências acima listadas. Por exemplo, o empregado sem confiança na sua liderança, com medo de mudança, inseguro de seu emprego, provavelmente fará o mínimo possível – apenas o mínimo de trabalho requerido – para evitar a sua própria demissão.


Os efeitos negativos que estão associados à percepção de insegurança no trabalho estão amplamente demonstrados na literatura organizacional. Especificamente em relação ao downsizing, um estudo longitudinal de Armstrond-Stassen (2004) identificou que gerentes intermediários, em geral, sentiam-se menos seguros no emprego que gerentes executivos, e, portanto, apresentaram mais sintomas relacionados com o estresse e menor desempenho que estes últimos. Com semelhante propriedade estão demonstrados o impacto negativo da queda do comprometimento e da motivação, da falta de confiança organizacional etc.


Ademais, o downsizing - quando conduzido negligenciando o fator humano - será interpretado como uma quebra do contrato psicológico. Este representa uma concepção acerca da relação de trabalho, tacitamente estabelecida entre empresa e trabalhador, e que determina as expectativas acerca dos papéis desempenhados por ambas as partes. Quando se percebe que esse contrato é quebrado as consequências podem ser irreversíveis; a relação poderá nunca voltar a ser a mesma.